Vamos ser sinceros: quando vemos um tênis Nike com o nome de um atleta, raramente pensamos no processo complexo que existe por trás daquela parceria. Não é só um contrato comercial ou uma estratégia de marketing qualquer – é um universo inteiro de decisões calculadas.
Quando a Nike “assinou” Kyrie Irving, eles não estavam apenas licenciando um corpo atlético. A escolha foi uma combinação deliberada de fatores econômicos, culturais, narrativos e até neurológicos. É fascinante, não é?
Neste ensaio, vou desvendar esse “segredo” em dez partes interconectadas. Vamos falar sobre como atletas são selecionados, como o significado é transferido de uma pessoa para um produto, e como essas colaborações moldam nossa cultura. Kyrie Irving será nosso estudo de caso principal – um exemplo perfeito de como essas parcerias funcionam no mundo contemporâneo.
As parcerias entre marcas esportivas e atletas vão muito além de meras transações comerciais e marketing superficial, revelando uma complexa interação de economia da atenção, engenharia cultural, ciência do comportamento e políticas de significado. A Nike, líder incontestável da indústria, exemplifica essa profundidade através de escolhas estratégicas como a de Kyrie Irving. Esta decisão, longe de ser um simples contrato de licenciamento de imagem, representa uma orquestração intencional de sinais de mercado, capital cultural, narrativa pessoal, dinamismo geracional e mecanismos cognitivos que moldam as percepções e decisões do consumidor.
Este ensaio busca desvendar o “segredo” por trás dessas colaborações bem-sucedidas, apresentando dez argumentos interligados que, juntos, oferecem uma compreensão holística:
A Nike seleciona atletas com base em seu alinhamento de valores, trajetória e arquétipo cultural, como exemplificado por Kyrie Irving. Há uma transferência de atributos positivos do atleta para o produto, cocriação no design, microtargeting geracional e integração estratégica em toda a cadeia de valor. Cada colaboração é uma narrativa inspiradora (como a de Kyrie Irving) e um investimento calculado que gera prova social e impulsiona a demanda. A gestão ética é fundamental, e o futuro aponta para colaborações ainda mais personalizadas e tecnológicas, incorporando metaverso e NFTs.
Cada seção interliga a teoria subjacente ao caso prático de Kyrie Irving, demonstrando como marcas e atletas não apenas vendem produtos, mas cocriam objetos culturais (como tênis) que funcionam simultaneamente como bens simbólicos – carregados de significado, identidade e aspiração – e como mercadorias tangíveis no mercado global. Essa complexidade é o verdadeiro “segredo” por trás do sucesso duradouro das colaborações da Nike.
Prontos para essa viagem? Vamos lá!
Seleção como pesquisa etnográfica: além do desempenho
A seleção de um atleta para parceria hoje vai muito além do que acontece em quadra. Nike e concorrentes realizam pesquisas que se assemelham a etnografias comerciais: observam comportamentos, conversas e repertórios estéticos nas redes, nas ruas e entre jovens consumidores. A narrativa de Kyrie Irving sobre testes com grupos de crianças e jovens (quem acha Kyrie “legenda”? o que “chega” a uma turma de 7 anos?) aponta para um procedimento clássico de “meaning extraction” — extrair o significado cultural que um atleta evoca (McCracken). A pesquisa aqui se aproxima de antropologia aplicada: colecionam reações, memórias afetivas, termos e imagens que servem para calibrar design, cor, storytelling e preço (McCracken 1989).
Transferência de significado: da pessoa ao produto
Grant McCracken introduziu a ideia do “meaning transfer”: celebridades carregam valores que as marcas podem transferir para produtos por meio de associação. A Nike não compra apenas uma habilidade física; compra um capital simbólico: estilo, rebeldia, autenticidade ou autoridade técnica. Esse processo é essencial para entender por que Kyrie, cuja narrativa pública mistura destreza técnica, controvérsia e uma estética “criativa”, se tornou uma boa “porta” para determinados significados que a Nike deseja ativar. O tênis passa a ser, sempre, uma mídia de sentido — e não só um item de desempenho (McCracken 1989).
Co‑criação e quebra de silos: do briefing ao calçado
O relato de Irving sobre exigir “um time, não departamentos separados” (design, apparel, marketing isolados) revela um princípio organizacional: a co‑criação aumenta relevância cultural.Quando a marca convoca o atleta para dialogar, para sair do escritório e ver a cultura “in loco”, cria‑se um produto que fala a linguagem do público — e não só um item desenhado por executivos à distância. Prahalad e Ramaswamy discutem co‑criação como estratégia de valor: quando consumidor e empresa interagem na criação, o produto carrega legitimidade participativa (Prahalad & Ramaswamy). Kyrie não só endossou, mas participou do design conceitual, diminuindo assim o gap entre o que a marca pensa ser relevante e o que o consumidor efetivamente reconhece como tal.
Microtargeting geracional: a regra dos “menores de 21”
O insight sobre ouvir crianças e jovens (7 a 21 anos) é econômico e cultural: gerações jovens definem tendências com velocidade exponencial — pela rede e pela cultura do espetáculo. Economicamente, isso equivale a capturar early adopters que fazem difusão (spread) e valor social; sociologicamente, é identificar os gatekeepers de gosto. A estratégia é combinatória: preço acessível + design que ressoe com a Gen Z/Geração Alpha = aceitação e multiplicação cultural. Em termos de marketing contemporâneo, isso é microtargeting cultural: não segmentar por renda apenas, mas por repertório estético e ritual (o que “aquele público” posta, salva e replica).
Design narrativo: o tênis como dispositivo narrativo
Tênis assinados hoje vêm com narrativas: história de vida do atleta, referências locais, símbolos; tudo isso enquadra o objeto como peça de uma trama identitária. A Nike e o atleta criam uma “big idea” (uma ideia‑mestre) que dá coesão ao produto. A teoria do storytelling aplicada ao branding indica que narrativas consistentes aumentam memorização e propensão ao compartilhamento (Kahneman sobre como emoção e narrativa influenciam tomada de decisão). O desenho e o nome tornam‑se “marcas de enunciado”: quem usa, conta que faz parte daquela história.
Sinalização e credibilidade: do preço à escassez
A teoria do sinal (Spence) sugere que algumas características — preço, edição limitada, badges de autenticidade — funcionam como sinais de qualidade ou exclusividade. No universo sneaker, há dois sinais simultâneos: o de prestígio (editions de elite, colaborações top) e o de pertencimento (linhas acessíveis que permitem “entrada” de novos fãs). Kyrie mostrou habilidade em navegar ambos: manter modelos aspiracionais e, ao mesmo tempo, oferecer versões que dialogam com jovens. A escassez deliberada (drops limitados) e as campanhas cronometradas transformam o consumo em evento social.
Neurociência social: por que imitamos e colecionamos
A neurociência explica parte do fenômeno: mecanismos de empatia e imitação, ligados ao sistema de neurônios‑espelho, tornam comportamentos de figuras modelo contagiosos (Rizzolatti & Craighero). Ver um ídolo calçando um modelo e performando com ele ativa simulações neurais que tornam o objeto aspiracional. Além disso, a ativação emocional (memória afetiva) aumenta a probabilidade de lembrança e, portanto, de compra (Kahneman). A construção de momentos visuais — anúncios com movimentos virais, vídeos curtos — explora exatamente esses mecanismos.
Prova social e curadoria editorial
A indústria sneaker vive de curadoria: influencers, lojas seletivas, colecionadores e reviewers constroem uma “rede certificadora”. A prova social — depoimentos, vendas esgotadas, coleções de influenciadores — transforma um calçado em “objeto de desejo validado”. Estudos sobre endosso mostram que atributos do endossante (credibilidade, similaridade, atratividade) moderam efeito sobre a marca (Amos, Holmes & Strutton). Kyrie, cuja figura online mistura performance e estilo, funciona como um endosante que tem certa proximidade — não só pelo status, mas porque suas escolhas ecoam entre comunidades jovens.
Economia dos lançamentos e ecossistemas de produto
Economicamente, o modelo Nike (e de outras marcas) não é apenas vender pares; é tornar o produto um eixo de um ecossistema: apps, drops, eventos, merchandising e conteúdo. A lucratividade de uma linha assinada depende de extensão (cores, colaborações), gestão de inventário e narrativa contínua que sustente demanda. O caso de Kyrie, cuja linha teria performances robustas mesmo em momentos de retração de outras linhas (relatos de mercado), ilustra a eficácia de alinhar produto, preço, cultura e distribuição.
Fricções éticas e reputacionais: quando a colaboração encontra controvérsia
Parcerias também carregam riscos reputacionais: comportamento público do atleta, posições políticas ou ações controversas podem repercutir negativamente sobre a marca. Aqui emerges a tensão entre autenticidade (que consumidores valorizam) e previsibilidade de risco. A política de risco/retorno da empresa — quanto controvérsia tolerar — é parte essencial do “segredo”. A maior robustez de uma parceria pode residir na capacidade da marca e do atleta de dialogarem com públicos heterogêneos e de responderem às crises com transparência.
Cultura colaborativa: o atleta como criador e curator
A mudança significativa nas últimas décadas foi transformar atletas em criadores: não apenas rostos, mas agentes criativos no design e na comunicação. Kyrie se descreve, no relato que inspirou este ensaio, como criador — exigente, interessado em cultura e em processo (o que o levou a “tirar” executivos do escritório). Isso encarna uma nova relação marca‑atleta: a colaboração horizontal, onde o valor cultural é mutuamente produzido. Empresas que entendem esse deslocamento ganham em autenticidade.
Ecologia digital: conteúdo que multiplica valor
A distribuição do conteúdo em camadas (pilar → micro‑conteúdos) é uma técnica comprovada para amplificar relevância cultural (modelo de repurposing). Gary Vaynerchuk e outros demonstraram a efetividade de documentar, fragmentar e redistribuir conteúdos para criar presença contínua e alimentar ecossistemas de fandom [55]. Para uma marca como a Nike, cada lançamento vira matéria prima para narrativas prolongadas em redes; para o atleta, cada peça é performance e curadoria cultural. Essa ecologia maximiza atenção e, por consequência, as métricas econômicas.
O futuro: sustentabilidade simbólica e valor duradouro
O desafio nas próximas décadas será transformar a efervescência simbólica em valor duradouro e socialmente responsável. Consumidores jovens esperam autenticidade e responsabilidade: sustentabilidade ambiental, posicionamentos éticos e engajamento social. Parcerias que integrarem esses eixos terão menos risco de desgaste e maior potencial de construir legados. O segredo — portanto — não é apenas escolher o atleta “certo” hoje, mas construir práticas colaborativas que resistam a tensões socioculturais emergentes.
Conclusão — provocação final
Parcerias como a da Nike com Kyrie Irving são laboratórios sociais híbridos: testam narrativas, modelos econômicos, arranjos criativos e hipóteses de sentido. O “segredo” não é uma fórmula mágica, mas um conjunto de práticas: escuta etnográfica, co‑criação genuína, microtargeting geracional, ativação neuroemocional e gestão reputacional. A verdadeira pergunta que fica para marcas, atletas e sociedade é outra: queremos apenas produtos‑fetiche que alimentem ciclos de consumo rápido — ou podemos construir objetos culturais que, além de mercadoria, sejam ferramentas de identidade, pertencimento e transformação social? Escolher bem um atleta para parceria é, portanto, escolher uma narrativa que vamos contar sobre nós mesmos como cultura. Que história queremos estar vendendo — e vivendo?
Referências (Estilo MLA)
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